(Contém palavrões susceptíveis de poderem chatear alguém...para além de muitos pontapés na gramática.)
Maria mexia-se freneticamente na cama – seriam umas dez horas da noite sensivelmente –, fazendo um chinfrim dos diabos. A cama era deveras antiga, toda em madeira e há muitas décadas, habitação de várias gerações de Carunchos (uns bichos que gostam muito da Ilha da Madeira). Como a cama ainda se aguentava de pé e intacta ao fim de uns sessenta/setenta anos, nem os próprios bichos o saberiam explicar!
A verdade é que a Maria e o Manél eram daqueles casais, como dizer, eternamente apaixonados, e sobre os quais os anos pareciam não passar, ou principalmente afectar, sentimentalmente falando. Os muitos anos de casados não os apartou um do outro, pelo contrário, uniu-os mais ainda. Era uma relação saudável, sadia, onde não importava a idade, nem as rugas, a pele envelhecida, os cabelos brancos, o furúnculo na nádega esquerda do Manél, as varizes nos seios da Maria, nem mesmo as teias de aranha, ou a algália que o Manél usava durante a noite para não manchar os belos lençóis brancos…hum…amarelos, de renda, que cobriam o colchão. A Maria teria os seus oitenta e quatro anos, o Manél era cinco anos mais velho.
Pequenas gotas de suor escorriam luzidias pela face velha e rugosa de Maria, atravessando depois o vale por entre as bossas desgastadas, murchas e flácidas, para seguirem barriga abaixo e por fim desaguarem perto do nariz de Manél.
Infelizmente para Maria, Manél não a podia penetrar nesta noite, pois o stock de Viagra tinha terminado, e comprar este medicamento aquelas horas da noite na pequena aldeia de São Nicolau do Pau Murcho, estava fora de questão.
- Ai, ‘tá-me a dar os afrontamentos…arrabenta-me aí home! Ai sim…sim…sim sinhori!
De repente os gemidos de Maria acentuaram-se, o que não era normal, despertando a atenção de Manél, que parou de imediato.
- Atão milher, há azar?
- Porra home, ‘tava aquase! Lembe! Lembe!.
- Eh pah, é que não é normal ouvir-te jamer assim!
- Sim, realmente ‘tou algo contusa aí em baixo…
- Pois…sabes que em relação a isso eu não posso dizer o mesmo…
- Não é isso Manél, ‘tou contusa…quer dizer que tenho uma contusão home!
- Claro que tens uma, querias ter quantas?
- Não é isso, contusão é o mesmo que dizer lesão home!
- Ah, atão eu tive razão para parar!
- Tiveste Manél, mas eu ‘tava aquase porra!
- Atão e agora?
- Não sei. Acho que devíamos chamar um taxe e irmos ao hospital ver o que é isto. O que é que tu achas?
- Espera lá…achega-te aqui – Manél levou o dedo indicador entre as pernas da mulher. – Diz-me o que é que sentes.
- Tu vê lá, não me alejes! – alertou Maria, ao mesmo tempo que deu um grito de dor.
- Pronto, vamos lá chamar atão o taxe.
- Isso, liga para o stander dos taxes!
Passavam dez minutos da meia-noite quando Maria e Manél chegaram ao Hospital de Bragança. São Nicolau do Pau Murcho pertence ao Concelho de Mirandela, Distrito de Bragança – zona este de Trás-os-Montes. (vá, vão lá ao Google Maps pesquisar se esta terra existe ou não!)
A sala de espera, nas urgências, nem estava assim tão cheia, tendo em conta que ainda era cedo e ser numa véspera de fim-de-semana. Estariam ali no máximo quatro/cinco pessoas. Entre elas estava a Etelvina, conhecida da Maria, que logo se aprestou a cumprimentá-la.
- Atão Maria, também por cá?
- É verdade milher, atão não vês…a idade não perdoa!
- Atão?
- Olha…deu-me uma dor aqui entre as pernas, que não queiras saber!
- A sério milher? Deve ser uma infecção urinária p’raí! Olha, a mim foi aqui nas cruzes – disse, pondo as mãos atrás das costas e junto às ancas para demonstrar à amiga.
- Bem, ‘tou com uma traça! – Manél interrompeu a conversa. – Já comia qualquer coisa…
- Vai ali home – disse Maria, apontado para uma máquina ao canto da sala. – Olha p’ró comer que há ali! Tens ali muito comer para comer!
- Sim, ‘tou a ver…vou ali ver o que há de comer p'ra pôr no bucho.
Passaram-se duas horas…
- Mas será possível Etelvina…já passaram duas horas e só foi atendida uma pessoa?! – protestou Maria.
- Eu sei Maria…eu que o diga, que vim p'raqui ás quatro da tarde, porque não consegui consulta no Centro de Saúde de Mirandela. Fui para lá marcar vez eram seis da manhã! Já ‘tá quase a fazer oito horas…
- A sério milher???
- Sim, já é normal…isto, a culpa é da Cambra Municipal! – opinou Etelvina.
- Olha, por falar em Cambra, esqueci-me de ir pagar a áuga!
- Deixa milher, eu também não paguei a minha. Olha, e o teu marido? Aonde é que ele se meteu?
- Deve ter ido à retrete mudar a algália…
Passou-se mais uma hora…
- Ai…ai…as minhas cruzes! – gemia Etelvina.
- Ai…ai…a minha vajaina! – lamentava-se Maria.
- Chega! - Manél, que já ressonava quase há uma hora, despertou com todas aquelas lamúrias. – Já chega!
Manél levantou-se devagarinho da cadeira (que a idade já não perdoa) e dirigiu-se, mais devagar ainda, ao guiché.
- ‘Tou farto disto! Alguém vai levar uma galheta nos cornos!!! – E depois de chegar ao guiché (passados dez minutos). – Quem é o responsável por isto? Vocês ‘tão a gozar com a gente!
- Sim, o senhor tem razão – desculpou-se prontamente a menina do guiché. – Sabe, é que o médico de serviço tem uma disfusão alimentar, e precisa comer sempre de hora a hora! Hoje ao jantar, por exemplo, mandou vir uma pizza pela primeira vez, e não queira saber…como o estômago dele não ‘tá habituado a este tipo de comeres, teve que fazer uma pausa nas consultas para recuperar…fez uma pausa de duas horas e aproveitou para ver o Benfica, que ‘tava a jogar àquela hora!
- A senhora já ‘ta a afectiva aqui? – perguntou o Manél.
- Eu? Não. Porquê?
- Atão vou fazer com que a despeçam! É uma incontinente!!!
Nisto, um enorme alvoroço desperta-lhe a atenção. Maria estava caída sobre os mosaicos frios, húmidos e sujos, daquela “sala de pânico” (lá está!).
- MARIA!!! – Manél coxeou em seu auxilio.
Passaram-se cinco minutos…
Manél chegou junto de Maria e inclinou-se ligeiramente – não se podia baixar devido à osteoporose da qual padecia.
- MARIA!!! – berrou a plenos pulmões.
Maria já não lhe respondeu.
Em poucos minutos dois enfermeiros com uma maca assomaram do meio do nada, e em poucos segundos desapareceram com Maria.
Passavam dez minutos das quatro da manhã quando um sujeito de bata branca irrompeu pela sala na direcção de Manél. Este alevantou-se e olhou o médico olhos nos olhos. Perante a expressão desconsolada e pesarosa do médico, Manél baixou a cabeça…
- A minha mulher doutor?...
- Usted es que el esposo de la Señora Maria?
- Ãnh???
- Su mujer acaba de morir! Mi más sentido pésame…mis sentimientos!
Etelvina levantou-se.
- Bem, deixa-me ir até casa, a ver se durmo uma horita…que às seis da manhã tenho que ‘tar no Centro de Saúde de Mirandela para marcar "vez"...outra vez!
Moral da História: Se querem ser atendidos num Centro de Saúde, ou Centro de Dia, e não marcaram consulta…o ideal é montarem acampamento logo às quatro da manhã!
Conclusão: Vocês têm noção dos médicos Espanhóis que invadiram o nosso país nos últimos anos? À atenção do sr. Paulo Macedo – Ministro da Saúde (pelo menos era à data)