Fora de Horas (só o primeiro capitulo)
Anjos Caídos
Colisão
O Cabo do Mundo
"FORA DE HORAS"
Alcácer do Sal – Sábado, 6h30 da madrugada
O motor da velha carrinha branca de caixa alta do senhor Fonseca, ressoava naquela ainda calma e silenciosa manhã, sonegando à sua passagem qualquer som característico e singular de toda a envolvente paisagem modelada de tons verdes e abundantes terrenos verdejantes. Num raio de poucas dezenas de quilómetros e até se chegar à costa apenas havia duas povoações dignas desse nome. Não eram localidades muito grandes, sim pequenas aldeias perdidas por entre terras de cultivo, salinas, arrozais, pinhais, quintas, açudes, num território predominantemente rico estendido nas margens do Sado. O destino do senhor Fonseca ficava aquém destas duas aldeias.
O sol aos poucos começava a querer despontar no horizonte, mas o calor, esse, já se fazia sentir àquela hora, ou não estivéssemos em pleno mês Agosto.
Era uma volta normal e corrente nas manhãs de Sábado do senhor Fonseca: despertava por volta das seis horas e antes de abrir o seu armazém (um pequeno negócio de revenda de diversos tipos de produtos), o que acontecia todos os dias às nove horas, saía da sua povoação, a vila de Alcácer do Sal, na direcção de Tróia onde mais ou menos entre as duas localidades iria abastecer uma certa propriedade. O dono da mesma – um abastado homem da região – pagava-lhe bem este serviço e privilégio.
O senhor Fonseca, um homem já com os seus setenta anos, ligeiramente coxo e com uma característica física muito particular – sofria de falta de pigmentação natural da pele e que se exprimia numas manchas brancas dispersas no corpo e principalmente no rosto – recebia o pedido de encomenda do abonado indivíduo durante a semana e entregava-a depois na dita propriedade ao Sábado, ou mesmo ao Domingo, logo pelo raiar do dia. Não é qualquer pessoa que se pode gabar de não precisar de se deslocar para fazer as suas compras e ter um fornecedor particular.
A sua chegada foi anotada pela câmara, o que precipitou a abertura imediata dos portões. A grande viatura entrou e invadiu a propriedade, afrouxando logo a marcha. Encostou logo ali do lado esquerdo na estrada alcatroada, que seguia pela herdade dentro, estabilizando-se junto de um grande casarão branco. Alguém já o esperava; de braços cruzados, erguido nos seus quase dois metros de altura, Cardoso desencostou-se da viatura azul à qual estava acostado e precipitou-se de braços abertos em direcção ao velho: «Fonseca!...isso ainda anda? O Dom manda cumprimentos.», disse-lhe abraçando-o ao mesmo tempo, «Esta semana ele vai lá ter contigo...parece que há novidades em relação aquilo...». Fonseca sorriu e anui num gesto de cumplicidade.
1
Mais tarde nessa mesma manhã…
- É aqui. Chegámos – disse Alberto. – Já podes tirar a venda dos olhos.
Pedro levou as mãos à cara e suavemente puxou para cima o estreito pano que lhe ocultava a visão. Já o trazia colocado há pouco mais de trinta quilómetros e foi com dificuldade que se voltou a ambientar com a claridade daquela manhã ainda jovem e solarenga.
O portão abriu-se.
A propriedade era enorme. Tinha o seu início e respectiva entrada junto a uma estrada secundária, sita algures abaixo da margem sul do Sado em plena zona protegida do estuário, para depois se prolongar mais uns tantos quilómetros por entre arvoredos e terrenos de cultura até se avistar a habitação do seu proprietário. No portão da entrada uma câmara controlava supostos intrusos, nada de mais, apenas uma pequena excentricidade do dono visto que em redor da vasta herdade os muros eram deveras baixos e a maior percentagem do cercado constituía-se de uma incipiente rede, igualmente baixa e terminada num pouco protector arame farpado.
- Olha, ali está ele! – Alberto quebrou o silêncio depois de ter percorrido quase toda a propriedade sem pronunciar uma única palavra. Levou a mão direita à cabeça de Pedro e tirou-lhe a venda que este tinha deixado na cabeça mas mais acima, sobre a testa. – Deixa-me ser eu a falar.
Entraram no largo contíguo à grande casa e estacionaram a viatura junto de outras duas que lá se encontravam, qualquer uma delas, deva-se dizer, o topo das suas gamas. Em frente, por baixo de um grande telheiro e junto da porta principal da enorme casa, o visitado erguia-se ainda de roupão vestido e com um copo de whisky numa mão e um charuto na outra. Era um homem alto, forte e teria os seus sessenta e poucos anos.
Enquanto eles se aproximavam tragou um pouco do whisky e bafejou demoradamente o enorme charuto.
- Dom Vicente, este é o tal rapaz que lhe falei – disse Alberto enquanto se aproximava. – O Pedro.
- Sim, estou a ver – Bebeu mais um pouco do whisky. – Mas sabes Alberto, há uma coisa que eu não vi…
Alberto retraiu-se por momentos, fazendo um semblante num misto de admiração e ansiedade. Dom Vicente era seu patrão, mas era principalmente conhecido por ser um homem rude, implacável e atento no que aos seus negócios dizia respeito e longe dele ou qualquer outra pessoa desapontá-lo, daí ter ficado algo impaciente perante tal observação. Deve-se dizer que Dom Vicente é aquele tipo de pessoa que todos querem ver bem-disposta e nunca aborrecida.
- Desculpe Dom Vicente, ma…mas não estou a perceber – gaguejou um pouco.
- Vi quando vocês chegaram. Pensei ter-te dito que queria aqui o nosso jovem de olhos vendados! – observou. – Não tem nada que saber onde eu moro!
- Está aqui Dom Vicente – Apressou-se a tirar o pano do bolso. – Já o tirei dentro da sua propriedade.
Dom Vicente no seu ar impenetrável, levou o copo à boca e sorveu mais um pouco daquele líquido maltado de quinze anos – não seria certamente o melhor da sua garrafeira –, fez um pequeno trejeito de satisfação e olhou para Pedro de soslaio.
- Hum… – Voltou a dirigir-se a Alberto e deu um pequeno passo em frente. – Podemos confiar no rapaz?
- Sim Dom Vicente, ele é de confiança. Pode ficar descansado.
- Está bem, eu vou confiar em ti. Tenho que reconhecer que ultimamente não tens sido aquela pessoa inteligente, astuta e prestável…e principalmente imprescindível dos últimos anos, mas apesar de tudo penso que mereces outra oportunidade. Espero não me vir a arrepender de o fazer!
Virou-se para Pedro.
- E tu jovem, já estás a par da situação?
- Sim – Pedro foi parco em palavras. Apesar de toda aquela atmosfera algo intimidatória, ele mantinha-se impávido e sereno por detrás do seu ar de jovem rebelde.
Tal como Alberto, Pedro vivia na maior cidade da zona (abaixo do rio Tejo): Setúbal. Esta grande e desenvolvida capital de distrito ficava a pouco mais de trinta minutos dali, isto se eles tivessem percorrido o caminho mais perto, atravessando o Rio logo ali no porto da cidade (no Ferry) em direcção a Tróia, o que teria sido uns vinte quilómetros a menos naquela viagem – mas Alberto tinha optado por uma volta maior, atravessando o rio Sado uns quarenta quilómetros mais à frente, para depois já na zona de Alcácer do Sal virar à direita num cruzamento para uma estrada secundária, que os levaria então na direcção de Tróia. A propriedade de Dom Vicente ficaria talvez entre estes dois últimos pontos: o cruzamento em Alcácer e a belíssima praia de Tróia.
- Vai ao barracão, já sabes onde fica. O Cardoso vai contigo – disse para Alberto. – O miúdo fica no carro, estás a ouvir? – Depois virou-lhes as costas e entrou em casa.
Alberto disse que sim e seguiu para o carro. Pedro foi logo atrás. Do lado direito da casa apareceu Cardoso, fez um sinal com a cabeça para cumprimentar Alberto e entrou depois num dos dois carros que ali se encontravam estacionados. Cardoso era um criado de Dom Vicente, mas a julgar pelo porte e o aspecto suspeito, seria tudo menos um criado.
O dito barracão – mais um enorme armazém – e onde Dom Vicente guardava todos os mantimentos necessários à subsistência dos animais da sua propriedade, ficava imediatamente junto do portão de entrada na herdade e estendia-se em comprimento, paralelo à estrada que invadia a mesma. Este armazém era bem visível do exterior, por quem ali circulasse na estrada. Erigido em tijolo e cimento, era uma construção bastante grande. Tinha um imenso portão castanho de madeira do lado esquerdo naquela frente larga e caiada a branco, para além de pequenas janelas compridas e continuas junto ao telhado e em redor do casarão. Nessa frente havia ainda outra porta, mas esta muito mais pequena e do lado direito. Essa porta era visível mas só por quem entrasse na propriedade.
Há uns dois anos atrás, e após vários meses de investigação, aquele denominado barracão, assim como toda a propriedade, haviam sido bem esmiuçados pela polícia judiciária, mas o que eles estariam a procurar na altura nunca conseguiram encontrar.
Pedro foi surpreendido pelo barulho da porta da mala do carro a ser aberta (o carro estava parado na estrada antes da saída da propriedade e paralelo ao grande casarão). Virou-se para trás e viu Alberto e Cardoso a colocarem duas caixas lá dentro. Olhou na direcção do grande armazém e percorreu-o com o olhar de uma ponta à outra. A pequena porta do lado direito estava aberta. Ele já tinha ouvido falar desta pequena porta antes.
Alberto despediu-se de Cardoso e entrou no carro.
- Toma, põe a venda – ordenou Alberto, antes de transpor o portão da propriedade.
- É mesmo preciso?
- Vá!...
Pedro voltou a vedar os olhos.
- Duas caixas? – perguntou.
- Sim. A mais leve é para ti – disse, sorrindo de seguida.
- A mais leve? Mas elas são do mesmo tamanho! – observou. – Uma está mais cheia do que a outra?
Alberto deu uma pequena gargalhada.
- Não, ambas estão cheias até acima. Não me digas que estavas à espera de ir vender o mesmo material que eu?! – admirou-se.
- Porquê? Qual é o problema?
- Ainda é muito cedo rapaz! Ainda és muito maçarico.
- Porque é que tenho que voltar a pôr esta merda nos olhos? – Pedro mudou de assunto. Não lhe estava a agradar a conversa.
- Tem calma. Mais dez quilómetros.
- Não confia em mim, é?
- Ouve, a questão não é essa…tenho que te proteger pah! Então? Sabes perfeitamente bem de que há mais coisas em jogo. E depois tenho de zelar pela segurança do meu sobrinho, ou não?
- Pois, mas eu não preciso que ninguém me proteja! – atirou Pedro com alguma rispidez. – Sei muito bem tomar conta de mim.
- Tem juízo rapaz…tens que ter calma. Para estas coisas há que ter muita serenidade e principalmente – apontou para a cabeça – muita cabecinha. Sabes, em tudo na vida há um princípio, um meio e um fim, e o princípio é o mais importante puto! Como tudo começa. Quanto melhor delineares esse teu princípio com mais expectativas chegas ao que pretendes alcançar.
Pedro mantinha-se imóvel e calado na sua postura fechada e irredutível.
- O tio está a fazer uma tempestade num copo de água.
- Eh pah, houve lá – interrompeu. – E se o meu irmão ou a tua mãe descobrem, ãnh? Sabes muito bem que o teu pai nunca aprovou o meu estilo de vida e pouco me fala…não podemos facilitar pah! Tira lá essa merda dos olhos anda! Tens onde guardar o material?
- Sim, tenho um sítio seguro.
Pedro destapou os olhos. Fechou e abriu-os por algumas vezes até se acostumar à luz do sol. Sol esse que ainda estava baixo, mas já aquecia sobremaneira aquela manhã de sábado.
- Tens que ter muito cuidado, ouviste?
- Eu vou ter cuidado – disse, com os olhos fixos na estrada.
- Ainda bem. É que o gajo não brinca em serviço pah, sejam quais forem os negócios. Eu trabalho para ele, mas não é só no escritório como tu sabes…e conheço-o muito bem e sei do que é capaz. Ouve...de todas as pessoas que trabalham para o velho eu sou das poucas que sabem onde ele vive, sabias? E mais – Alberto, se queria alertar o sobrinho para tudo o que englobava a presente situação, mais parecia agora um miúdo a gabar-se das botas novas acabadas de estrear. – Se na firma posso não ter um maior estatuto, neste negócio meu amigo, a minha posição é intocável! Sou mesmo um dos braços direitos dele.
- E em relação a este negócio...
Alberto não o deixou acabar a frase.
- O que é que tem este negócio? – atirou, franzindo o sobrolho.
- Nada...nada...
- Mau! Para que é tanto suspense? Sabes que comigo estás à vontade.
- Então, como advogado dele…o tio também deve estar a par de outras coisas de certeza!
- Como assim?
- Sei lá…outras coisas.
Pedro dirigiu um provocante sorriso trocista ao tio. Este reparou. Aquelas semi-perguntas acompanhadas de um trejeito arreganhado quereriam dizer algo certamente, mas algo que ele não estava a ver. Parecia deixar transparecer uma pergunta, mas mais em tom de sondagem. Ou mesmo uma retórica, mais a afirmar do que a precisar necessariamente de uma resposta.
- Vá lá, desembucha que já me estás a complicar com os nervos!
- Não se lembra no fim-de-semana passado…quando falámos pela primeira vez deste negócio e eu poder entrar nele?
- Sim. Fomos jantar e depois levei-te ao bar do Vicente e...depois...penso que ainda foste à minha casa…
- Sim, na sua casa. Já não se lembra das coisas que me contou?
- Hum...pois...já estou a ver onde é que tu queres chegar – disfarçou. – Que grande piela que apanhei nessa noite ãnh?
Pedro fez um sorriso complacente e sincero.
- Ouve, esquece tudo o que te disse e contei nessa noite, está bem? Não interessa, ok? – pediu-lhe num tom brando e conformado. – Provavelmente só disse asneiras...
- Sim, claro! – condescendeu. - Bem…lógico que o gajo não é nenhum santo. Lógico que estou a par de muitas merdas mas… – Fez um pequeno tempo de espera e já não voltou a falar.
- Já alguma vez defendeu o Dom Vicente em tribunal?
- Não, nunca calhou…mas também estão lá colegas meus mais experientes nessa matéria. Eu encarrego-me de coisas mais simples sabes, de casos menos importantes: divórcios, partilhas, heranças, coisas assim…
- Então mas o Vicente já foi assim julgado tantas vezes?
- Bem, pelo menos duas…eu também só trabalho para ele há cerca de três anos!
- Teve a ver com droga?
- O quê…os julgamentos? Não…um teve a ver com fraude de seguros, a seguradora era do irmão dele, mas foi ilibado. Outra com tráfico de mulheres para exploração sexual, pelo menos segundo a acusação…o tal bar, lembras-te? Mas safou-se com pena suspensa e acabou por pagar uma ninharia de multa…e há outro ainda – Alberto parou de falar de repente e virou-se para Pedro. – Eh pah, então mas para que é essa curiosidade toda?
- Nada, então…vamos só a conversar…acho que não podemos falar é sobre o outro assunto, agora isto não tem nada de mal não é?
- Sim senhor, saíste-me cá um espertalhão!
Pedro riu-se, mostrando mesmo os dentes.
- Pois…mas este julgamento que está a decorrer agora contra o velho, penso que já não será assim tão fácil de resolver como os outros…mas o gajo tem aí tantos juízes e bófias comprados que os meus colegas não deverão ter assim tanto trabalho para o safar…comem todos do mesmo tacho…embora este julgamento já se arraste há um ano, para aí.
- Então e este, qual é a acusação? Droga?
- Não…por aí dificilmente o conseguirão agarrar! Branqueamento…lavagem de dinheiro…diz-te alguma coisa? Também não me vou dar ao trabalho de te explicar!
- Pois, um mafioso sócio-gerente de um banco…
Alberto guinou imediatamente o carro para a bordo da estrada, travando-o apenas, sem o desligar.
- Ouve puto – começou por dizer, virando-se para ele e apontando um dedo na sua direcção. Pedro não o deixou continuar.
- Tio…tio…vá lá…sabe que pode confiar em mim!
- Vê lá rapaz, a sério! Não nos ponhas aos dois em trabalhos ãnh?! – avisou-o. Virou-se para a frente e desengatou a viatura, dando depois um pequeno suspiro, antes de arrancar e voltar a entrar na estrada.
Alberto era advogado de profissão e tinha quarenta e cinco anos. O cabelo era bastante branco sobre uma face quadrada e já bastante vincada dos anos. As rugas sobressaíam em redor de uns olhos inchados, sequiosos de saltar das órbitas e eram o espelho da sua vida já muito vivida. Pela sua maneira de vestir, os fatos caros de marca e os dois potentes carros que conduzia, deixava transparecer um homem bem colocado na vida
Levou a mão ao bolso e tirou um maço de tabaco. Ofereceu um a Pedro, que aceitou de imediato, e tirou um para ele.
- Vais guardar isto durante uns dias, ouviste? – informou, num tom que mais parecia de ordenação. – Uma semana para aí!
- Porquê?
- Puto! Houve o que te estou a dizer!
- Sim, ok…está bem.
- Vê lá, não sejas parvo ok? – avisou, acendendo o cigarro e mudando de assunto. – Os teus pais estão bem?
- Sim, vai-se andando…
Pedro mantinha os olhos na estrada. De quando em vez olhava na outra direcção, para a direita, e depois voltava a mirar a estrada.
Não tinha tido uma infância fácil é certo e no alto dos seus vinte e cinco anos já tinha passado por muito. À sua altura compatibilizava-se o físico encorpado – não era gordo – com um corpo consistente e bem musculado. O cabelo rapado e a barba por fazer eram sensivelmente do mesmo tamanho sobre uma pele morena. Tinha a cara comprida, com um queixo proeminente que lhe conferia um trejeito sólido e robusto. O olhar era sóbrio e penetrante e através dos seus olhos castanhos deixava transparecer uma imagem rude, mas ao mesmo tempo leal.
Tendo deixado a escola ainda muito novo, também cedo começara a trabalhar e a aperceber-se das dificuldades da vida. Não é fácil quando pertencemos a um meio pobre. Vimos de famílias humildes e o dinheiro dos nossos pais não abunda para nos sustentar, quanto mais para auxiliar uma carreira de estudante. Chega um ponto em que nos vimos retraídos perante a sociedade e apartados dos nossos amigos. Muitas vezes, discriminados na escola. Olhamos para as coisas que os outros têm e que nós também gostávamos de ter, mas que os nossos pais não nos podem facultar. Reflectimos sobre a vida e tudo o que nos rodeia, e ao mesmo tempo olhamos para o nosso corpo desenvolvido enquanto interiorizamos que os livros e as letras não vieram para ficar no nosso mundo. Talvez não tenhamos capacidades para mais, ou talvez a vida seja dura e o meio em que vivemos e fomos criados nos persiga para qualquer lado que vamos. Mas se isto poderia desculpar toda a sua rebeldia, jamais desculparia o seu historial delinquente. Não diria que fosse um historial extenso ou recheado de crimes violentos e que os delitos em causa ultrapassassem os limites do que é aceitável, isto se houver crimes que sejam aceitáveis, ou toleráveis, mais que não seja, depois de perpetrados, serem facilmente esquecidos e desculpados. E viver num bairro social e um dos mais problemáticos da vasta cidade de Setúbal com certeza não abonaria nada em seu favor.
- E a Rita? – insistia Alberto, fazendo os possíveis por tornar a viagem mais rápida e menos monótona.
- Está bem.
- Ainda estuda?
- Não. Trabalha num restaurante na baixa...perto do cais.
- Ainda bem para ela. Assim também pode ajudar e contribuir com algum lá para casa. Isto não está fácil!
- Aos meus pais! – resmungou. – Eu não preciso de ajuda para nada!
- Então porque é que eu estou a ajudar-te? – ironizou Alberto, fazendo um lesto sorriso.
- Sabe bem o que eu quero dizer…
Sandra! – berrou Rita da janela do terceiro andar, após ouvir a campainha. – Sobe, estou quase pronta!
Rita abriu-lhe a porta e cumprimentaram-se.
- Anda, entra para o meu quarto – disse. – É só calçar-me. Então, não foste trabalhar hoje?
- Então, não te disse que ia pedir o dia ao senhor António?
- Sim…mas nunca esperei que ele tu desse! – estranhou Rita.
- Tu podes estar de férias, mas há lá muito boa gente para me substituir…e além do mais inventei uma desculpa daquelas que só eu sei inventar.
- Conta!
- Bem…disse-lhe que tu precisavas de ajuda para descansar, que andavas muito cansada – informou Sandra, começando a rir à gargalhada.
Rita que tinha acabado de calçar o ultimo sapato, lançou-se sobre Sandra, levando a que esta caísse para trás sobre a cama.
- Vais ver agora! – exclamou, antes de iniciar um ataque de cócegas à amiga. – Sua arrogante, estás para aí a falar, mas vais ver...ainda vais trabalhar para mim!
- Mas que presunçosa…trabalhar para ti?
- Sim, na limpeza – gozou Rita, afastando-se e dirigindo-se a um espelho na parede.
Sandra sentou-se na cama e compôs-se.
- Então, isso ainda demora muito?
- Está quase, só falta o meu maravilhoso cabelo – bricou Rita, começando a escová-lo.
- És tão convencida!
Rita e Sandra eram amigas há muitos anos, desde os tempos do ensino preparatório, e inseparáveis desde sempre. Mesmo depois de terminarem os estudos (ambas tinham completado o 12º) continuaram inseparáveis, visto terem começado a trabalhar no mesmo restaurante. Começou por ser primeiro um trabalho de férias, mas depois por lá foram ficando, e entretanto tinham-se passado dois anos.
Rita, quase a fazer vinte anos, era de estatura baixa, magra, mas com umas curvas bem delineadas. Morena e de olhos verdes, teria provavelmente muitos rapazes a suspirarem por ela. Era muito bonita, de face arredondada e maçãs do rosto salientes. Tinha uns traços leves e expressão delicada que muitas vezes contrariavam a sua personalidade forte e atrevida, mas que casavam na perfeição no que à sua educação e inteligência diziam respeito. Quem olhasse para ela na sua forma de ser, de se vestir e de estar na vida, dificilmente iria pensar tratar-se de uma rapariga de origens pobres e humildes.
Sandra era mais velha, tinha vinte e um anos de idade e namorava com Pedro, irmão de Rita, há cinco. Era alta, mas não tão alta como o namorado – seria alta para uma rapariga, com certeza – pele bastante branca e uns cabelos lisos e loiros que lhe penteavam sem grande volume a face ovóide. Era magra e pode dizer-se que bonita também. Apesar de ser predominantemente extrovertida e divertida, também sabia ser ponderada e sensata quando era preciso. Com um namorado como Pedro era importante ter este tipo de virtudes: a ponderação, mas também muita perseverança.
- O teu irmão? – estranhou Sandra, pois Pedro sabia da sua ida ali a casa depois do almoço.
- Disse que ia ter com o teu primo Luís. Não sei porquê mas aqueles dois devem andar a preparar alguma!
- Então? Porque dizes isso?
- Bem…ele saiu de casa ainda não era nove horas, coisa inédita pelo menos a um sábado…chegou passadas duas horas e voltou a sair, pouco ou nada falou e depois veio à uma hora para almoçar! Sentou-se à mesa mudo e pouco comeu, quase nem abriu a boca, levantou-se e saiu calado. As últimas palavras foram que ia ter com o teu primo. Ora, se isto não é estranho! Os meus pais também acharam…
- Sim, alguma coisa se passa – concordou Sandra. – E agora que falas nisso, ele já ontem me pareceu um pouco diferente.
- Também reparaste? Sabes, ontem ele recebeu um telefonema já à tardinha quando chegou do trabalho. Não percebi bem a conversa, mas tinha a ver com um encontro num sítio qualquer, portanto…
- Portanto, foi com essa pessoa que ele saiu hoje de manhã – completou. – Ai se foi com uma gaja dou cabo dele!
- Não Sandra, não foi. Sabes…ontem fiquei com a impressão de ter percebido ele dizer “tio” ao telefone, mas não liguei…agora é que estou a lembrar-me e também a começar a juntar as peças.
- O quê…tu não achas que…
- Não sei – respondeu Rita. – O estilo de vida do meu tio Alberto não é propriamente o mais honesto do mundo não é?
- Sim, eu sei. Mas que sacana!
- Calma…também não sabemos se é verdade.
- Não há uma semana que aquele gajo não apronte uma!
- O melhor é hoje à noite, e se formos sair para algum lado, ficarmos na nossa mas de antenas no ar, entendes? – propôs Rita.
- Ya, é isso mesmo que vamos fazer.
- Olha, a falarmos neles e os gajos ali em baixo.
Sandra aproximou-se também da janela.
- Mas o que é que eles estarão a dizer? – murmurou Rita, como se eles a pudessem ouvir. – E naquela mala do carro…o que estará naquela mala para a qual o Luís tanto olha?
- Espera que eu já volto. Vais ver, vou fazer-lhes uma surpresa e apanhá-los desprevenidos!
Luís vinha em passo acelerado. Pedro esperava por ele junto à porta do prédio onde vivia e encostado ao seu carro preto, já a pedir a reforma, ou então uma pintura completa. Luís vivia um pouco mais à frente. Para além de viverem no mesmo bairro, também trabalhavam no mesmo sítio – num armazém de papéis junto à zona portuária de Setúbal – e portanto, tal como a Rita e a Sandra, eram muito amigos e andavam quase sempre juntos.
Luís tinha vinte e um anos, os mesmos da sua prima Sandra, e era tal como Pedro, moreno e com olhos castanhos, embora fosse de estatura mais baixa e mais magro, mas com o cabelo um pouco maior e mais claro. Era uma pessoa simples e um tudo ou nada recatado. Não era tão rebelde como o amigo, apesar de o acompanhar para todo o lado. Mesmo que quisesse fugir a alguma aventura ou ideia mais disparatada de Pedro, era difícil, visto ainda não ter a carta de condução e andar sempre à boleia deste.
No bairro onde viviam, na freguesia de São Julião – um sítio algo problemático da cidade e zona de alguns gangs – eles acima de tudo orgulhavam-se de nunca terem pertencido ou mesmo envolvido com nenhum daqueles bandos. Talvez por terem começado a trabalhar muito cedo, quem sabe? Ou talvez por uma questão familiar e de princípios. Ou mesmo por medo, porque não, a verdade é que alguns pequenos delitos já ninguém podia tirar-lhes – alguns roubos, nada de significante, mas principalmente alguns assaltos a viaturas. Era vê-los muitas vezes durante a noite a fazerem ligações directas a carros topo de gama e depois a passarem o resto da madrugada a percorrerem estradas, velocímetro no máximo, só pelo puro prazer e divertimento.
- Então pah?! Pensas que eu tenho o dia todo?
- Desculpa, a minha mãe atrasou-se com o almoço – desculpou-se Luís.
- Qual almoço – cortou Pedro, estendendo o braço para cumprimentar o amigo. – Hoje lá é dia para almoços? Espera-nos uma tarde em grande puto!
A postura recatada que Pedro exibira de manhã junto do seu tio, dava agora lugar em toda a sua plenitude à rebeldia e tonteira do costume, aquela que o caracterizava junto dos amigos no seu dia-a-dia.
- Sempre foste lá?
- O que é que achas? Espreita aqui na mala – Dirigiu-se para a traseira do carro e puxou o amigo que tinha ficado parado. – Vá meu, do que é que tens medo?
Abriu a mala, ficando descoberta a caixa que lá se encontrava dentro. Virou-se para Luís e colocou-lhe as mãos, uma em cada orelha.
- Puto! Olha só o papel que vamos fazer!
- Eh pah, não sei…
- Então? Deixa-te de merdas! Estás-te a passar meu? – perscrutou-o. – Está tudo controlado…a tua participação na cena vai ser mínima. Já tínhamos falado sobre isto…porque é que achas que só vais receber dez por cento? Agora vais começar só por acompanhar-me, dás-me apoio moral e tal e depois logo se vê.
- Não sei – ressoou.
- Estás a dar uma de santinho agora é? Não estou a perceber o desatino…então e as cenas que já passámos juntos meu?
- Mas isto é diferente, não sei…
- Diferente!? – admirou-se solenemente. – Aqui quem está diferente és só tu meu amigo! Vá…confia em mim puto!
Luís que olhava insistentemente para a caixa virou-se para Pedro.
- Mas o que é que tens em mente?
- Eh pah, assim é que é falar!
Pedro encostou-se mais a Luís, ladeando-o ligeiramente e pôs-lhe a mão sobre o ombro. Ficaram os dois virados para toda a correnteza de prédios cremes de cinco andares. Preparava-se para continuar a falar quando Luís o interrompeu.
- Olha, está ali a tua irmã à janela – disse, acenando de seguida para Rita e fazendo um sorriso de orelha a orelha.
- Caraças! Será que ela percebeu alguma coisa? – Pedro acenou igualmente de fugida para a irmã, fechou a mala do carro e dirigiu-se para a porta da frente. – Vá, vamos embora! Entra no carro depressa que já falamos pelo caminho…
A porta do prédio abriu-se naquele instante.
- Mas onde é que eles estão? – perguntou Sandra, acabada de sair para o meio da rua e olhando para Rita que tinha acabado de se debruçar na janela.
- Eles viram-me e foram-se embora! – berrou Rita do terceiro andar, encolhendo os ombros com uma expressão de desilusão no rosto.
Anjos Caídos
Colisão
O Cabo do Mundo
"FORA DE HORAS"
Alcácer do Sal – Sábado, 6h30 da madrugada
O motor da velha carrinha branca de caixa alta do senhor Fonseca, ressoava naquela ainda calma e silenciosa manhã, sonegando à sua passagem qualquer som característico e singular de toda a envolvente paisagem modelada de tons verdes e abundantes terrenos verdejantes. Num raio de poucas dezenas de quilómetros e até se chegar à costa apenas havia duas povoações dignas desse nome. Não eram localidades muito grandes, sim pequenas aldeias perdidas por entre terras de cultivo, salinas, arrozais, pinhais, quintas, açudes, num território predominantemente rico estendido nas margens do Sado. O destino do senhor Fonseca ficava aquém destas duas aldeias.
O sol aos poucos começava a querer despontar no horizonte, mas o calor, esse, já se fazia sentir àquela hora, ou não estivéssemos em pleno mês Agosto.
Era uma volta normal e corrente nas manhãs de Sábado do senhor Fonseca: despertava por volta das seis horas e antes de abrir o seu armazém (um pequeno negócio de revenda de diversos tipos de produtos), o que acontecia todos os dias às nove horas, saía da sua povoação, a vila de Alcácer do Sal, na direcção de Tróia onde mais ou menos entre as duas localidades iria abastecer uma certa propriedade. O dono da mesma – um abastado homem da região – pagava-lhe bem este serviço e privilégio.
O senhor Fonseca, um homem já com os seus setenta anos, ligeiramente coxo e com uma característica física muito particular – sofria de falta de pigmentação natural da pele e que se exprimia numas manchas brancas dispersas no corpo e principalmente no rosto – recebia o pedido de encomenda do abonado indivíduo durante a semana e entregava-a depois na dita propriedade ao Sábado, ou mesmo ao Domingo, logo pelo raiar do dia. Não é qualquer pessoa que se pode gabar de não precisar de se deslocar para fazer as suas compras e ter um fornecedor particular.
A sua chegada foi anotada pela câmara, o que precipitou a abertura imediata dos portões. A grande viatura entrou e invadiu a propriedade, afrouxando logo a marcha. Encostou logo ali do lado esquerdo na estrada alcatroada, que seguia pela herdade dentro, estabilizando-se junto de um grande casarão branco. Alguém já o esperava; de braços cruzados, erguido nos seus quase dois metros de altura, Cardoso desencostou-se da viatura azul à qual estava acostado e precipitou-se de braços abertos em direcção ao velho: «Fonseca!...isso ainda anda? O Dom manda cumprimentos.», disse-lhe abraçando-o ao mesmo tempo, «Esta semana ele vai lá ter contigo...parece que há novidades em relação aquilo...». Fonseca sorriu e anui num gesto de cumplicidade.
1
Mais tarde nessa mesma manhã…
- É aqui. Chegámos – disse Alberto. – Já podes tirar a venda dos olhos.
Pedro levou as mãos à cara e suavemente puxou para cima o estreito pano que lhe ocultava a visão. Já o trazia colocado há pouco mais de trinta quilómetros e foi com dificuldade que se voltou a ambientar com a claridade daquela manhã ainda jovem e solarenga.
O portão abriu-se.
A propriedade era enorme. Tinha o seu início e respectiva entrada junto a uma estrada secundária, sita algures abaixo da margem sul do Sado em plena zona protegida do estuário, para depois se prolongar mais uns tantos quilómetros por entre arvoredos e terrenos de cultura até se avistar a habitação do seu proprietário. No portão da entrada uma câmara controlava supostos intrusos, nada de mais, apenas uma pequena excentricidade do dono visto que em redor da vasta herdade os muros eram deveras baixos e a maior percentagem do cercado constituía-se de uma incipiente rede, igualmente baixa e terminada num pouco protector arame farpado.
- Olha, ali está ele! – Alberto quebrou o silêncio depois de ter percorrido quase toda a propriedade sem pronunciar uma única palavra. Levou a mão direita à cabeça de Pedro e tirou-lhe a venda que este tinha deixado na cabeça mas mais acima, sobre a testa. – Deixa-me ser eu a falar.
Entraram no largo contíguo à grande casa e estacionaram a viatura junto de outras duas que lá se encontravam, qualquer uma delas, deva-se dizer, o topo das suas gamas. Em frente, por baixo de um grande telheiro e junto da porta principal da enorme casa, o visitado erguia-se ainda de roupão vestido e com um copo de whisky numa mão e um charuto na outra. Era um homem alto, forte e teria os seus sessenta e poucos anos.
Enquanto eles se aproximavam tragou um pouco do whisky e bafejou demoradamente o enorme charuto.
- Dom Vicente, este é o tal rapaz que lhe falei – disse Alberto enquanto se aproximava. – O Pedro.
- Sim, estou a ver – Bebeu mais um pouco do whisky. – Mas sabes Alberto, há uma coisa que eu não vi…
Alberto retraiu-se por momentos, fazendo um semblante num misto de admiração e ansiedade. Dom Vicente era seu patrão, mas era principalmente conhecido por ser um homem rude, implacável e atento no que aos seus negócios dizia respeito e longe dele ou qualquer outra pessoa desapontá-lo, daí ter ficado algo impaciente perante tal observação. Deve-se dizer que Dom Vicente é aquele tipo de pessoa que todos querem ver bem-disposta e nunca aborrecida.
- Desculpe Dom Vicente, ma…mas não estou a perceber – gaguejou um pouco.
- Vi quando vocês chegaram. Pensei ter-te dito que queria aqui o nosso jovem de olhos vendados! – observou. – Não tem nada que saber onde eu moro!
- Está aqui Dom Vicente – Apressou-se a tirar o pano do bolso. – Já o tirei dentro da sua propriedade.
Dom Vicente no seu ar impenetrável, levou o copo à boca e sorveu mais um pouco daquele líquido maltado de quinze anos – não seria certamente o melhor da sua garrafeira –, fez um pequeno trejeito de satisfação e olhou para Pedro de soslaio.
- Hum… – Voltou a dirigir-se a Alberto e deu um pequeno passo em frente. – Podemos confiar no rapaz?
- Sim Dom Vicente, ele é de confiança. Pode ficar descansado.
- Está bem, eu vou confiar em ti. Tenho que reconhecer que ultimamente não tens sido aquela pessoa inteligente, astuta e prestável…e principalmente imprescindível dos últimos anos, mas apesar de tudo penso que mereces outra oportunidade. Espero não me vir a arrepender de o fazer!
Virou-se para Pedro.
- E tu jovem, já estás a par da situação?
- Sim – Pedro foi parco em palavras. Apesar de toda aquela atmosfera algo intimidatória, ele mantinha-se impávido e sereno por detrás do seu ar de jovem rebelde.
Tal como Alberto, Pedro vivia na maior cidade da zona (abaixo do rio Tejo): Setúbal. Esta grande e desenvolvida capital de distrito ficava a pouco mais de trinta minutos dali, isto se eles tivessem percorrido o caminho mais perto, atravessando o Rio logo ali no porto da cidade (no Ferry) em direcção a Tróia, o que teria sido uns vinte quilómetros a menos naquela viagem – mas Alberto tinha optado por uma volta maior, atravessando o rio Sado uns quarenta quilómetros mais à frente, para depois já na zona de Alcácer do Sal virar à direita num cruzamento para uma estrada secundária, que os levaria então na direcção de Tróia. A propriedade de Dom Vicente ficaria talvez entre estes dois últimos pontos: o cruzamento em Alcácer e a belíssima praia de Tróia.
- Vai ao barracão, já sabes onde fica. O Cardoso vai contigo – disse para Alberto. – O miúdo fica no carro, estás a ouvir? – Depois virou-lhes as costas e entrou em casa.
Alberto disse que sim e seguiu para o carro. Pedro foi logo atrás. Do lado direito da casa apareceu Cardoso, fez um sinal com a cabeça para cumprimentar Alberto e entrou depois num dos dois carros que ali se encontravam estacionados. Cardoso era um criado de Dom Vicente, mas a julgar pelo porte e o aspecto suspeito, seria tudo menos um criado.
O dito barracão – mais um enorme armazém – e onde Dom Vicente guardava todos os mantimentos necessários à subsistência dos animais da sua propriedade, ficava imediatamente junto do portão de entrada na herdade e estendia-se em comprimento, paralelo à estrada que invadia a mesma. Este armazém era bem visível do exterior, por quem ali circulasse na estrada. Erigido em tijolo e cimento, era uma construção bastante grande. Tinha um imenso portão castanho de madeira do lado esquerdo naquela frente larga e caiada a branco, para além de pequenas janelas compridas e continuas junto ao telhado e em redor do casarão. Nessa frente havia ainda outra porta, mas esta muito mais pequena e do lado direito. Essa porta era visível mas só por quem entrasse na propriedade.
Há uns dois anos atrás, e após vários meses de investigação, aquele denominado barracão, assim como toda a propriedade, haviam sido bem esmiuçados pela polícia judiciária, mas o que eles estariam a procurar na altura nunca conseguiram encontrar.
Pedro foi surpreendido pelo barulho da porta da mala do carro a ser aberta (o carro estava parado na estrada antes da saída da propriedade e paralelo ao grande casarão). Virou-se para trás e viu Alberto e Cardoso a colocarem duas caixas lá dentro. Olhou na direcção do grande armazém e percorreu-o com o olhar de uma ponta à outra. A pequena porta do lado direito estava aberta. Ele já tinha ouvido falar desta pequena porta antes.
Alberto despediu-se de Cardoso e entrou no carro.
- Toma, põe a venda – ordenou Alberto, antes de transpor o portão da propriedade.
- É mesmo preciso?
- Vá!...
Pedro voltou a vedar os olhos.
- Duas caixas? – perguntou.
- Sim. A mais leve é para ti – disse, sorrindo de seguida.
- A mais leve? Mas elas são do mesmo tamanho! – observou. – Uma está mais cheia do que a outra?
Alberto deu uma pequena gargalhada.
- Não, ambas estão cheias até acima. Não me digas que estavas à espera de ir vender o mesmo material que eu?! – admirou-se.
- Porquê? Qual é o problema?
- Ainda é muito cedo rapaz! Ainda és muito maçarico.
- Porque é que tenho que voltar a pôr esta merda nos olhos? – Pedro mudou de assunto. Não lhe estava a agradar a conversa.
- Tem calma. Mais dez quilómetros.
- Não confia em mim, é?
- Ouve, a questão não é essa…tenho que te proteger pah! Então? Sabes perfeitamente bem de que há mais coisas em jogo. E depois tenho de zelar pela segurança do meu sobrinho, ou não?
- Pois, mas eu não preciso que ninguém me proteja! – atirou Pedro com alguma rispidez. – Sei muito bem tomar conta de mim.
- Tem juízo rapaz…tens que ter calma. Para estas coisas há que ter muita serenidade e principalmente – apontou para a cabeça – muita cabecinha. Sabes, em tudo na vida há um princípio, um meio e um fim, e o princípio é o mais importante puto! Como tudo começa. Quanto melhor delineares esse teu princípio com mais expectativas chegas ao que pretendes alcançar.
Pedro mantinha-se imóvel e calado na sua postura fechada e irredutível.
- O tio está a fazer uma tempestade num copo de água.
- Eh pah, houve lá – interrompeu. – E se o meu irmão ou a tua mãe descobrem, ãnh? Sabes muito bem que o teu pai nunca aprovou o meu estilo de vida e pouco me fala…não podemos facilitar pah! Tira lá essa merda dos olhos anda! Tens onde guardar o material?
- Sim, tenho um sítio seguro.
Pedro destapou os olhos. Fechou e abriu-os por algumas vezes até se acostumar à luz do sol. Sol esse que ainda estava baixo, mas já aquecia sobremaneira aquela manhã de sábado.
- Tens que ter muito cuidado, ouviste?
- Eu vou ter cuidado – disse, com os olhos fixos na estrada.
- Ainda bem. É que o gajo não brinca em serviço pah, sejam quais forem os negócios. Eu trabalho para ele, mas não é só no escritório como tu sabes…e conheço-o muito bem e sei do que é capaz. Ouve...de todas as pessoas que trabalham para o velho eu sou das poucas que sabem onde ele vive, sabias? E mais – Alberto, se queria alertar o sobrinho para tudo o que englobava a presente situação, mais parecia agora um miúdo a gabar-se das botas novas acabadas de estrear. – Se na firma posso não ter um maior estatuto, neste negócio meu amigo, a minha posição é intocável! Sou mesmo um dos braços direitos dele.
- E em relação a este negócio...
Alberto não o deixou acabar a frase.
- O que é que tem este negócio? – atirou, franzindo o sobrolho.
- Nada...nada...
- Mau! Para que é tanto suspense? Sabes que comigo estás à vontade.
- Então, como advogado dele…o tio também deve estar a par de outras coisas de certeza!
- Como assim?
- Sei lá…outras coisas.
Pedro dirigiu um provocante sorriso trocista ao tio. Este reparou. Aquelas semi-perguntas acompanhadas de um trejeito arreganhado quereriam dizer algo certamente, mas algo que ele não estava a ver. Parecia deixar transparecer uma pergunta, mas mais em tom de sondagem. Ou mesmo uma retórica, mais a afirmar do que a precisar necessariamente de uma resposta.
- Vá lá, desembucha que já me estás a complicar com os nervos!
- Não se lembra no fim-de-semana passado…quando falámos pela primeira vez deste negócio e eu poder entrar nele?
- Sim. Fomos jantar e depois levei-te ao bar do Vicente e...depois...penso que ainda foste à minha casa…
- Sim, na sua casa. Já não se lembra das coisas que me contou?
- Hum...pois...já estou a ver onde é que tu queres chegar – disfarçou. – Que grande piela que apanhei nessa noite ãnh?
Pedro fez um sorriso complacente e sincero.
- Ouve, esquece tudo o que te disse e contei nessa noite, está bem? Não interessa, ok? – pediu-lhe num tom brando e conformado. – Provavelmente só disse asneiras...
- Sim, claro! – condescendeu. - Bem…lógico que o gajo não é nenhum santo. Lógico que estou a par de muitas merdas mas… – Fez um pequeno tempo de espera e já não voltou a falar.
- Já alguma vez defendeu o Dom Vicente em tribunal?
- Não, nunca calhou…mas também estão lá colegas meus mais experientes nessa matéria. Eu encarrego-me de coisas mais simples sabes, de casos menos importantes: divórcios, partilhas, heranças, coisas assim…
- Então mas o Vicente já foi assim julgado tantas vezes?
- Bem, pelo menos duas…eu também só trabalho para ele há cerca de três anos!
- Teve a ver com droga?
- O quê…os julgamentos? Não…um teve a ver com fraude de seguros, a seguradora era do irmão dele, mas foi ilibado. Outra com tráfico de mulheres para exploração sexual, pelo menos segundo a acusação…o tal bar, lembras-te? Mas safou-se com pena suspensa e acabou por pagar uma ninharia de multa…e há outro ainda – Alberto parou de falar de repente e virou-se para Pedro. – Eh pah, então mas para que é essa curiosidade toda?
- Nada, então…vamos só a conversar…acho que não podemos falar é sobre o outro assunto, agora isto não tem nada de mal não é?
- Sim senhor, saíste-me cá um espertalhão!
Pedro riu-se, mostrando mesmo os dentes.
- Pois…mas este julgamento que está a decorrer agora contra o velho, penso que já não será assim tão fácil de resolver como os outros…mas o gajo tem aí tantos juízes e bófias comprados que os meus colegas não deverão ter assim tanto trabalho para o safar…comem todos do mesmo tacho…embora este julgamento já se arraste há um ano, para aí.
- Então e este, qual é a acusação? Droga?
- Não…por aí dificilmente o conseguirão agarrar! Branqueamento…lavagem de dinheiro…diz-te alguma coisa? Também não me vou dar ao trabalho de te explicar!
- Pois, um mafioso sócio-gerente de um banco…
Alberto guinou imediatamente o carro para a bordo da estrada, travando-o apenas, sem o desligar.
- Ouve puto – começou por dizer, virando-se para ele e apontando um dedo na sua direcção. Pedro não o deixou continuar.
- Tio…tio…vá lá…sabe que pode confiar em mim!
- Vê lá rapaz, a sério! Não nos ponhas aos dois em trabalhos ãnh?! – avisou-o. Virou-se para a frente e desengatou a viatura, dando depois um pequeno suspiro, antes de arrancar e voltar a entrar na estrada.
Alberto era advogado de profissão e tinha quarenta e cinco anos. O cabelo era bastante branco sobre uma face quadrada e já bastante vincada dos anos. As rugas sobressaíam em redor de uns olhos inchados, sequiosos de saltar das órbitas e eram o espelho da sua vida já muito vivida. Pela sua maneira de vestir, os fatos caros de marca e os dois potentes carros que conduzia, deixava transparecer um homem bem colocado na vida
Levou a mão ao bolso e tirou um maço de tabaco. Ofereceu um a Pedro, que aceitou de imediato, e tirou um para ele.
- Vais guardar isto durante uns dias, ouviste? – informou, num tom que mais parecia de ordenação. – Uma semana para aí!
- Porquê?
- Puto! Houve o que te estou a dizer!
- Sim, ok…está bem.
- Vê lá, não sejas parvo ok? – avisou, acendendo o cigarro e mudando de assunto. – Os teus pais estão bem?
- Sim, vai-se andando…
Pedro mantinha os olhos na estrada. De quando em vez olhava na outra direcção, para a direita, e depois voltava a mirar a estrada.
Não tinha tido uma infância fácil é certo e no alto dos seus vinte e cinco anos já tinha passado por muito. À sua altura compatibilizava-se o físico encorpado – não era gordo – com um corpo consistente e bem musculado. O cabelo rapado e a barba por fazer eram sensivelmente do mesmo tamanho sobre uma pele morena. Tinha a cara comprida, com um queixo proeminente que lhe conferia um trejeito sólido e robusto. O olhar era sóbrio e penetrante e através dos seus olhos castanhos deixava transparecer uma imagem rude, mas ao mesmo tempo leal.
Tendo deixado a escola ainda muito novo, também cedo começara a trabalhar e a aperceber-se das dificuldades da vida. Não é fácil quando pertencemos a um meio pobre. Vimos de famílias humildes e o dinheiro dos nossos pais não abunda para nos sustentar, quanto mais para auxiliar uma carreira de estudante. Chega um ponto em que nos vimos retraídos perante a sociedade e apartados dos nossos amigos. Muitas vezes, discriminados na escola. Olhamos para as coisas que os outros têm e que nós também gostávamos de ter, mas que os nossos pais não nos podem facultar. Reflectimos sobre a vida e tudo o que nos rodeia, e ao mesmo tempo olhamos para o nosso corpo desenvolvido enquanto interiorizamos que os livros e as letras não vieram para ficar no nosso mundo. Talvez não tenhamos capacidades para mais, ou talvez a vida seja dura e o meio em que vivemos e fomos criados nos persiga para qualquer lado que vamos. Mas se isto poderia desculpar toda a sua rebeldia, jamais desculparia o seu historial delinquente. Não diria que fosse um historial extenso ou recheado de crimes violentos e que os delitos em causa ultrapassassem os limites do que é aceitável, isto se houver crimes que sejam aceitáveis, ou toleráveis, mais que não seja, depois de perpetrados, serem facilmente esquecidos e desculpados. E viver num bairro social e um dos mais problemáticos da vasta cidade de Setúbal com certeza não abonaria nada em seu favor.
- E a Rita? – insistia Alberto, fazendo os possíveis por tornar a viagem mais rápida e menos monótona.
- Está bem.
- Ainda estuda?
- Não. Trabalha num restaurante na baixa...perto do cais.
- Ainda bem para ela. Assim também pode ajudar e contribuir com algum lá para casa. Isto não está fácil!
- Aos meus pais! – resmungou. – Eu não preciso de ajuda para nada!
- Então porque é que eu estou a ajudar-te? – ironizou Alberto, fazendo um lesto sorriso.
- Sabe bem o que eu quero dizer…
Sandra! – berrou Rita da janela do terceiro andar, após ouvir a campainha. – Sobe, estou quase pronta!
Rita abriu-lhe a porta e cumprimentaram-se.
- Anda, entra para o meu quarto – disse. – É só calçar-me. Então, não foste trabalhar hoje?
- Então, não te disse que ia pedir o dia ao senhor António?
- Sim…mas nunca esperei que ele tu desse! – estranhou Rita.
- Tu podes estar de férias, mas há lá muito boa gente para me substituir…e além do mais inventei uma desculpa daquelas que só eu sei inventar.
- Conta!
- Bem…disse-lhe que tu precisavas de ajuda para descansar, que andavas muito cansada – informou Sandra, começando a rir à gargalhada.
Rita que tinha acabado de calçar o ultimo sapato, lançou-se sobre Sandra, levando a que esta caísse para trás sobre a cama.
- Vais ver agora! – exclamou, antes de iniciar um ataque de cócegas à amiga. – Sua arrogante, estás para aí a falar, mas vais ver...ainda vais trabalhar para mim!
- Mas que presunçosa…trabalhar para ti?
- Sim, na limpeza – gozou Rita, afastando-se e dirigindo-se a um espelho na parede.
Sandra sentou-se na cama e compôs-se.
- Então, isso ainda demora muito?
- Está quase, só falta o meu maravilhoso cabelo – bricou Rita, começando a escová-lo.
- És tão convencida!
Rita e Sandra eram amigas há muitos anos, desde os tempos do ensino preparatório, e inseparáveis desde sempre. Mesmo depois de terminarem os estudos (ambas tinham completado o 12º) continuaram inseparáveis, visto terem começado a trabalhar no mesmo restaurante. Começou por ser primeiro um trabalho de férias, mas depois por lá foram ficando, e entretanto tinham-se passado dois anos.
Rita, quase a fazer vinte anos, era de estatura baixa, magra, mas com umas curvas bem delineadas. Morena e de olhos verdes, teria provavelmente muitos rapazes a suspirarem por ela. Era muito bonita, de face arredondada e maçãs do rosto salientes. Tinha uns traços leves e expressão delicada que muitas vezes contrariavam a sua personalidade forte e atrevida, mas que casavam na perfeição no que à sua educação e inteligência diziam respeito. Quem olhasse para ela na sua forma de ser, de se vestir e de estar na vida, dificilmente iria pensar tratar-se de uma rapariga de origens pobres e humildes.
Sandra era mais velha, tinha vinte e um anos de idade e namorava com Pedro, irmão de Rita, há cinco. Era alta, mas não tão alta como o namorado – seria alta para uma rapariga, com certeza – pele bastante branca e uns cabelos lisos e loiros que lhe penteavam sem grande volume a face ovóide. Era magra e pode dizer-se que bonita também. Apesar de ser predominantemente extrovertida e divertida, também sabia ser ponderada e sensata quando era preciso. Com um namorado como Pedro era importante ter este tipo de virtudes: a ponderação, mas também muita perseverança.
- O teu irmão? – estranhou Sandra, pois Pedro sabia da sua ida ali a casa depois do almoço.
- Disse que ia ter com o teu primo Luís. Não sei porquê mas aqueles dois devem andar a preparar alguma!
- Então? Porque dizes isso?
- Bem…ele saiu de casa ainda não era nove horas, coisa inédita pelo menos a um sábado…chegou passadas duas horas e voltou a sair, pouco ou nada falou e depois veio à uma hora para almoçar! Sentou-se à mesa mudo e pouco comeu, quase nem abriu a boca, levantou-se e saiu calado. As últimas palavras foram que ia ter com o teu primo. Ora, se isto não é estranho! Os meus pais também acharam…
- Sim, alguma coisa se passa – concordou Sandra. – E agora que falas nisso, ele já ontem me pareceu um pouco diferente.
- Também reparaste? Sabes, ontem ele recebeu um telefonema já à tardinha quando chegou do trabalho. Não percebi bem a conversa, mas tinha a ver com um encontro num sítio qualquer, portanto…
- Portanto, foi com essa pessoa que ele saiu hoje de manhã – completou. – Ai se foi com uma gaja dou cabo dele!
- Não Sandra, não foi. Sabes…ontem fiquei com a impressão de ter percebido ele dizer “tio” ao telefone, mas não liguei…agora é que estou a lembrar-me e também a começar a juntar as peças.
- O quê…tu não achas que…
- Não sei – respondeu Rita. – O estilo de vida do meu tio Alberto não é propriamente o mais honesto do mundo não é?
- Sim, eu sei. Mas que sacana!
- Calma…também não sabemos se é verdade.
- Não há uma semana que aquele gajo não apronte uma!
- O melhor é hoje à noite, e se formos sair para algum lado, ficarmos na nossa mas de antenas no ar, entendes? – propôs Rita.
- Ya, é isso mesmo que vamos fazer.
- Olha, a falarmos neles e os gajos ali em baixo.
Sandra aproximou-se também da janela.
- Mas o que é que eles estarão a dizer? – murmurou Rita, como se eles a pudessem ouvir. – E naquela mala do carro…o que estará naquela mala para a qual o Luís tanto olha?
- Espera que eu já volto. Vais ver, vou fazer-lhes uma surpresa e apanhá-los desprevenidos!
Luís vinha em passo acelerado. Pedro esperava por ele junto à porta do prédio onde vivia e encostado ao seu carro preto, já a pedir a reforma, ou então uma pintura completa. Luís vivia um pouco mais à frente. Para além de viverem no mesmo bairro, também trabalhavam no mesmo sítio – num armazém de papéis junto à zona portuária de Setúbal – e portanto, tal como a Rita e a Sandra, eram muito amigos e andavam quase sempre juntos.
Luís tinha vinte e um anos, os mesmos da sua prima Sandra, e era tal como Pedro, moreno e com olhos castanhos, embora fosse de estatura mais baixa e mais magro, mas com o cabelo um pouco maior e mais claro. Era uma pessoa simples e um tudo ou nada recatado. Não era tão rebelde como o amigo, apesar de o acompanhar para todo o lado. Mesmo que quisesse fugir a alguma aventura ou ideia mais disparatada de Pedro, era difícil, visto ainda não ter a carta de condução e andar sempre à boleia deste.
No bairro onde viviam, na freguesia de São Julião – um sítio algo problemático da cidade e zona de alguns gangs – eles acima de tudo orgulhavam-se de nunca terem pertencido ou mesmo envolvido com nenhum daqueles bandos. Talvez por terem começado a trabalhar muito cedo, quem sabe? Ou talvez por uma questão familiar e de princípios. Ou mesmo por medo, porque não, a verdade é que alguns pequenos delitos já ninguém podia tirar-lhes – alguns roubos, nada de significante, mas principalmente alguns assaltos a viaturas. Era vê-los muitas vezes durante a noite a fazerem ligações directas a carros topo de gama e depois a passarem o resto da madrugada a percorrerem estradas, velocímetro no máximo, só pelo puro prazer e divertimento.
- Então pah?! Pensas que eu tenho o dia todo?
- Desculpa, a minha mãe atrasou-se com o almoço – desculpou-se Luís.
- Qual almoço – cortou Pedro, estendendo o braço para cumprimentar o amigo. – Hoje lá é dia para almoços? Espera-nos uma tarde em grande puto!
A postura recatada que Pedro exibira de manhã junto do seu tio, dava agora lugar em toda a sua plenitude à rebeldia e tonteira do costume, aquela que o caracterizava junto dos amigos no seu dia-a-dia.
- Sempre foste lá?
- O que é que achas? Espreita aqui na mala – Dirigiu-se para a traseira do carro e puxou o amigo que tinha ficado parado. – Vá meu, do que é que tens medo?
Abriu a mala, ficando descoberta a caixa que lá se encontrava dentro. Virou-se para Luís e colocou-lhe as mãos, uma em cada orelha.
- Puto! Olha só o papel que vamos fazer!
- Eh pah, não sei…
- Então? Deixa-te de merdas! Estás-te a passar meu? – perscrutou-o. – Está tudo controlado…a tua participação na cena vai ser mínima. Já tínhamos falado sobre isto…porque é que achas que só vais receber dez por cento? Agora vais começar só por acompanhar-me, dás-me apoio moral e tal e depois logo se vê.
- Não sei – ressoou.
- Estás a dar uma de santinho agora é? Não estou a perceber o desatino…então e as cenas que já passámos juntos meu?
- Mas isto é diferente, não sei…
- Diferente!? – admirou-se solenemente. – Aqui quem está diferente és só tu meu amigo! Vá…confia em mim puto!
Luís que olhava insistentemente para a caixa virou-se para Pedro.
- Mas o que é que tens em mente?
- Eh pah, assim é que é falar!
Pedro encostou-se mais a Luís, ladeando-o ligeiramente e pôs-lhe a mão sobre o ombro. Ficaram os dois virados para toda a correnteza de prédios cremes de cinco andares. Preparava-se para continuar a falar quando Luís o interrompeu.
- Olha, está ali a tua irmã à janela – disse, acenando de seguida para Rita e fazendo um sorriso de orelha a orelha.
- Caraças! Será que ela percebeu alguma coisa? – Pedro acenou igualmente de fugida para a irmã, fechou a mala do carro e dirigiu-se para a porta da frente. – Vá, vamos embora! Entra no carro depressa que já falamos pelo caminho…
A porta do prédio abriu-se naquele instante.
- Mas onde é que eles estão? – perguntou Sandra, acabada de sair para o meio da rua e olhando para Rita que tinha acabado de se debruçar na janela.
- Eles viram-me e foram-se embora! – berrou Rita do terceiro andar, encolhendo os ombros com uma expressão de desilusão no rosto.